NINA (uma amiga)
NINA (uma amiga)

Butterfly

Essa colega, Nina, foi um cometa extremamente atingido pela cruel atmosfera da vida, que por um instante passou por mim.

Abril de 2004.

Eu estava no Projeto Maniçoba, no lote de meu pai, João Alves, para ajudar minha cunhada, nos cuidados com João Victor meu sobrinho, não lembro se por que minha mãe viajara ou se ela estava doente. Nesse meio tempo eu costumava fazer umas visitas a outros pequenos agricultores que ficavam na vizinhança. Desta feita fui à casa de um pessoal, conhecido de longas datas, visitar uma das filhas que se encontrava acometida de grave enfermidade. Nina tinha 31 anos, mãe solteira e sofria de lúpus.

Meses atrás a doença se mantinha razoavelmente controlada, porém, vez ou outra ela entrava em crise. Tomei conhecimento que dessa vez o mal se agravara bastante. Dentro de sua residência fui informada de que seu estado era lastimável. Ela se encontrava acamada. Eu não pensava que fosse tão grave.

Indicaram-me um quarto e eu a encontrei debaixo de um mosquiteiro. Parecia meio inchada. Antes ela ouviu minha voz e reconheceu chamando-me. O ambiente era paupérrimo. Havia um banquinho, desses sem encosto, alguns medicamentos em cima do mesmo, um encardido copo de plástico com um pouco de água. Um pequeno “balde”, que outrora fora vasilhame de insumo agrícola, fazia às vezes de um penico. Era bem amarelado. Onde ela urinava, pois não tinha condição de se dirigir ao “banheiro social” que ficava um pouco distante. Segundo informou a família uma enfermeira ou técnica de enfermagem, enviada do posto de saúde local, vinha vez ou outra, fazer curativo e espremer um abscesso, por ordem da família, até não ter mais o que espremer mesmo a paciente dizendo que não suportava mais tanta dor, por isso afirmava que não queria mais os tais procedimentos. Nesse exato momento a família insistia que ela não gritasse.

Fiquei vindo de minha casa no lote para casa dela, algumas vezes, e geralmente encontrava-a ardendo em febre, mas a família dizia “que era assim mesmo”. Eu questionava que medicamento ela tinha tomado, como a resposta era negativa, passava a medicá-la com o antitérmico deixado pelo posto de saúde. Ela ficava dias deitada.

Certa vez providenciei para que ela ficasse deitada em uma cadeira de balanço na sala, momento em que podia estar presente com os parentes, e onde era mais ventilado.

Mas estando lá à tardinha ela me confidenciava, enquanto eles assistiam à novela das 18 horas, que não gostava de pedir nada a eles, pois sempre se diziam "ocupados" e cansados, e quando resolvia atendê-la era sob muito resmungo. Eu mesma presenciei isso. Soube que falavam até dos crentes que não vinham visitá-la. Na verdade sendo Nina crente eles queriam que os evangélicos tomassem a responsabilidade que lhes era devida. Penso. Mas não acho que agiam assim por maldade, cuidar de uma pessoa com doença crônica, não era fácil, considerando, mais ainda, todas as limitações.

Passado uns dois dias mais uma vez fui visitá-la. A rotina era a de sempre. Nina me preocupava cada vez mais. Nesse dia fui um pouco mais tarde. Fui de bicicleta, como sempre, e demorei mais do que de costume. Sabia que estava um pouco escuro e isso me preocupou. Sob a admiração de muitos subi em minha bicicleta e empreendi pedaladas de volta. Nunca um percurso foi-me tão difícil. Realmente estava bastante escuro e meus óculos que necessitavam serem trocados não me proporcionavam boa visibilidade. O tempo todo eu clamava, sem enxergar por onde estava indo: “Meu Deus, meu Deus me ajuda”! E prosseguia. Atravessei uma minúscula ponte sobre o canal de porte médio que circundava nossas áreas agrícolas. Próximo a minha casa, ao pedalar por uma elevação cheia de pedregulho, sem saber aonde ia direito, com medo freei a bicicleta, o pneu derrapou e eu me estendi no chão suportando o peso do corpo sobre minhas duas mãos espalmadas. Machuquei também as pernas. As pedrinhas minúsculas perfuraram meus punhos. Levantei-me trêmula na escuridão. Em casa nada falei, a não ser para expor o quanto estava escandalizada com a má vontade, com indiferença dos familiares de Nina, que, inclusive, não tinham respostas convincentes para nada que eu perguntava: “lá na emergência o que os médicos disseram sobre ela estar assim?" Quis saber. Não disseram nada e eles não perguntaram. "Que medicamento ele passou"? Perderam a receita de um, e o sonífero que seria entregue gratuitamente não sabiam como localizar a farmácia pública lá na cidade. “Ela está tomando o quê para dor e febre”? Não tomava nada.

Meu Deus Que absurdo! Pensava. Eles nem eram tão alienados assim, aparentemente. Tem dois irmãos que se mostravam bem desenvoltos. Mas bem classificou uma vizinha: eles eram frios. Dentro em mim eu só pensava que alguma coisa teria que ser feita por ela. Não dava para continuar naquele estado eu gostaria de levá-la para minha casa.

Primeiro tentaria cuidar dela, depois, dependendo do ocorrido, tentaria interná-la. A não ser que os médicos a desenganassem totalmente, nesse caso eu não poderia fazer muita coisa, haja vista minha precária condição financeira para uma assistência maior. Falei dessa minha intenção com Nina, da possibilidade de levá-la comigo. Ela não hesitou e disse: “Ah, é tudo o que eu quero. Eu não posso continuar aqui”. Depois fiquei preocupada: “Meu Deus, eu não posso nem pagar-lhe uma consulta particular, não tenho dinheiro para comprar os remédios e ademais estou aqui no lote cuidando dos meus. O que eu vou fazer”? Teria que agir logo. Ela não estava nada bem.

Minha irmã Alzenate conhecia um pessoal de umas clínicas, talvez ela conseguisse uma consulta.  Havia um centro médico, do setor público, que atendia pessoas portadoras de câncer talvez fosse melhor tentar conseguir alguma coisa através deles. Falei isso com Nina ela se animou bastante.

Entrei em contato com minha irmã, ela tentou de todos os meios para conseguir uma consulta. Não foi possível. Tentamos então o centro de oncologia, mas apenas fariam um atendimento e a paciente retornaria para casa, isso de posse de um encaminhamento.

Nesse meio tempo Nina me cobrava, queria uma resposta, quando eu a levaria dali. Meus familiares me colocavam contra a parede com esquadrinhamento temeroso ante tal responsabilidade, levando em consideração meus parcos meios financeiros. Eu estava começando a me assustar. Não sabia mais se tinha sido uma boa ideia esses meus planos.

Nesse ínterim havia um senhor que veio nos visitar e passava uns dias conosco. Ao terminar de fazer o costumeiro café das três horas da tarde aborreci-me tremendamente com meu pai pelo comentário que ele fez quando eu disse: “Hoje não acertei o ponto desse café”. Ele respondeu: “Você nunca certa". Isso tudo baseado no tal amigo folgado, que fazia comentários dos mais inconvenientes, inclusive sobre meu café. Tipo: “Seu café hoje saiu muito fraco”. Meu pai, nesse sentido, era uma pessoa muito incompreensiva. Incapaz de defender seus filhos, ele provou isso em outras situações. Ele era o tipo, “Maria vai com as outras". Pensei bastante nisso e me irritei profundamente. No íntimo o xinguei:  “Medíocre”! Parece que ele se mancou, depois veio com brincadeira para o meu lado. Era sempre esse o jeito dele pedir desculpas. No próximo café que tomou disse que eu já podia “até casar”, pois já sabia fazer café. Vê se pode!  Respondi-lhe que em breve isso aconteceria. Com um sorriso zombeteiro, com aquele jeito de quem duvida, soltando um pequeno assopro na hora da fala, disse: “Ô... Com quem...”?!  Sendo eu já uma "solteirona", apenas falei: “Deus Proverá”. Passado uns anos, nem eu mesma acreditava nem mais queria.  Na hora apenas pensei: “Coitado... A emenda saiu pior do que o soneto”.  Ele duvidava sempre. Não nos achava capazes de nada. Isso me empurrou para muitas lembranças: sua total falta de acompanhamento, de apoio, de sondagem para saber como estávamos. Lembrei-me da sua falta de emoção em minha formatura. Reclamava do atraso e olhava o relógio o tempo todo, me constrangendo. Não teve sensibilidade em me dar um anel como símbolo (não aquele referente à formatura, apenas um anel simbólico que eu tanto queria por parte dele).

Quando dei por mim estava cheia de amargura, e lutei: “Espera aí... Eu não quero isso dentro de mim. Respirei fundo expulsando. Eu não tenho que guardar isso. Ele viveu em outro mundo, em um mundinho bem fraco, ele não soube despertar sensibilidades, por isso não tem compreensão das coisas, e nem sequer sabe que estou sofrendo por causa de sua fala. Quer saber, deixa para lá"! graças a Deus nada ficou. Perdoei-o.

À tardinha, assistindo ao programa de Joyce Meyer, tudo fora confirmado com o meu pensamento. Ela dizia em sua mensagem: “Você pode evitar que certos pensamentos em sua mente desçam e faça morada em seu coração. Até porque não vale a pena. Deus não se agrada disso, se entristece. Livre-se disso. Se alguém lhe feriu, lhe magoou, você tem que considerar uma série de fatores: a mentalidade da pessoa, o jeito de ser dessa pessoa, pois você tem outra visão, isso lhe torna um tanto superior a certas situações. Sendo assim, não se deixe atingir”.

“Meu Deus! o senhor é lindo!” Pensei. Era como se essa mulher tivesse lido meus pensamentos. Graças a Deus estava no caminho certo. A partir daí encarei meu pai como se nada tivesse acontecido.

Poucos dias depois tive a oportunidade de levar Nina comigo. Minha cunhada já estava bem, isso me dava a liberdade de voltar para minha casa. O esposo de minha prima Alcione, que morava nas proximidades, nos arranjou o carro. Em um domingo à tarde fui buscá-la. Meu irmão Nilson ofereceu-se para dirigir. Tudo estava pronto.

Após Nina arrumar-se tentamos leva-la até o carro. Ela arrastava os pés, mal podendo levantá-los, e dizia que não conseguiria chegar. Eu a incentivava ao máximo e pedia a ela que tivesse força. Vez em quando as pernas oscilavam. No meio do pequeno percurso percorrido entre o quarto e o carro, ela teve diarreia, pude perceber que era de nervosismo. Pois, segundo sua mãe nunca mais tivera. A mãe dela muito se angustiou, e me disse: “Está vendo o que lhe espera?! Você tem certeza que quer levá-la”?  Respondi que tinha certeza absoluta.  Com muita lentidão voltamos para o quarto para tirarmos suas roupas, nesse momento ela começou a espantar uma mosca, grande, teimosa. Com ar de assombro expressou uma superstição: “Tá vendo, “irmã”, isso é um mau sinal. Quando essa mosca aparece é porque vamos morrer”. Espantei a mosca sem acreditar na superstição. A irmã dela irritada disse: “Você vai ter que preparar uma vitrine para colocá-la”. “Não se preocupe. Sei como agir”. Rebati.

Enquanto limpavam-na chamei a mãe dela num canto, tive uma conversa com parte da família e falei: “A senhora está ciente que estou levando-a para tentar dar-lhe uma melhor assistência. levá-la ao médico e se possível interná-la, enfim, fazer de tudo para que ela saia dessa crise. Depois disso a trarei de volta, mesmo que o médico a desengane totalmente. Vocês sabem que eu não tenho nenhuma condição financeira para ficar com ela por muito tempo”.  Nessa hora a irmã dela, que havia terminado de limpá-la e era o tipo bem exasperado, aproximou-se. Aproveitei para lhes fazer uma pergunta embaraçosa.  “Prometi que cuidaria bem dela, mas, e se ela morrer, enquanto estiver sob meus cuidados”?!  A irmã engoliu a seco. Rumou para um filtro de barro, colocou água em um copo e bebeu. Eles me disseram que me conheciam bem, a mim e minha família, sabia de minha responsabilidade, e que se não confiasse não a deixaria ir.  Se isso acontecesse seria a vontade de Deus, pois eles tinham consciência do estado grave em que ela se encontrava.  Mas tiveram uma preocupação: “Só fico pensando, falou a mãe dela, no que os outros vão falar. Vão pensar que a gente a abandonou”. “Não se preocupe. Não devemos nada a ninguém em relação a isso, uma vez que estamos fazendo o bem. Não temos que ficar dando satisfação”.  Tranquilizei-as.

Voltamos novamente a empreender o percurso com lentidão até o carro para acomodá-la bem. O carro era uma picape saveiro. Ela foi com meu irmão na cabine e eu fui na parte externa, de cima. Seguimos por 47 km.

Na saída ela apenas olhou de lado e deu com a mão em sinal de adeus. Não teve o abraço da mãe, da irmã, do pai, que por ser separado de sua mãe, acompanhava a cena meio distante. Muito menos o aconchego da filha, não me lembro se ela a abençoou, que me parece tinha oito anos. Dava para perceber que tudo que ela queria era sair dali.

Era umas dezesseis horas da tarde. Fomos direto para a Emergência Hospitalar, confesso que esteva bastante apreensiva e temerosa, com medo do que pudesse dar errado. De que me sobreviesse mais tarde alguma ação contrária. “Meu Deus, o que estou fazendo?! Toma a minha frente, por misericórdia”.  Orei.  Logo chegamos ao pronto-socorro. Ela mal se mexia, foi colocada em uma cadeira espaçosa, apropriada para o repouso de poucas horas, enquanto tomava soro. Por falta de leito havia várias delas na pequena saleta, a cadeira era bastante desconfortável, e ela me falava o tempo todo que não podia suportar aquela posição, devido aos abscessos nas nádegas. Sua cabeça estava coberta por uma touca preta de lã. Entre os seios, bem no osso esterno apareciam algumas feridas. Eu estava inquieta. Compadeci-me tanto, mas nada mais podia fazer, a não ser informar o motivo por ela estar ali naquela cadeira: não havia leitos disponíveis. Procurei saber do médico se ela ficaria internada, e ele me disse: “Olha, sem dúvida o caso dela é de internamento. Infelizmente não será possível, apesar de ela estar nessa crise toda. Não tem vaga”.

Depois que acabou o soro, pedi que passasse alguns medicamentos para eu cuidar dela em casa. Ele receitou um corticoide, anti-inflamatório e um antitérmico, nada que ela já não viesse tomando.

Ambiente desagradável! Até parecia que eu estava ali pela primeira vez. Em poucas horas foi possível contemplar várias desgraças: acidentados de carro, pessoa esfaqueada ou simplesmente febre elevada. Os leitos lotados. Uma mulher jovem, morena, de boa aparência, sacudia a cabeça para um lado e para outro, em uma maca, parecia semi-inconsciente. Seu esposo, também jovem, ajeitava-lhe os cabelos. Ela não conseguia respirar. Vez em quando eu voltava até Nina para saber como ela estava, e retornei ao casal novamente. Quis saber o motivo da jovem mulher não conseguir respirar. O esposo dela me explicou: cigarro. Disse-me ele condenando o vício.

Saímos de lá mais de meia-noite. Meu irmão aguardava no estacionamento.

Ao chegar a casa Nina não conseguia descer do carro. Foi preciso colocá-la em uma cadeira de plástico e alguns homens nos ajudaram com ela; ela ainda cumprimentou minha irmã com brincadeiras.

Meu irmão despediu-se de nós e se foi. Coloquei o mosquiteiro no teto, ajeitei minha cama de casal e ela dormiu muito bem. No dia seguinte comprei o medicamento mais um sabonete bactericida, o material para curativos e frutas. Logo que cheguei coloquei água para amornar. Depois que ela acordou tomou o medicamento levei-a para o banho. Com muito sacrifício, apoiando-se na cadeira enquanto eu e minha sobrinha a arrastávamos pelo beco, até chegar ao banheiro. Sentou-se na mesma cadeira e me pus a ensaboá-la.  Ela não tinha mais nenhum pelo na cabeça, seu couro cabeludo estava recoberto por algumas crostas amareladas. Seu corpo estava cheio de feridas. Em determinado momento falou: “Sabe, nem minha mãe me banhou desse jeito”. Começamos a conversar um pouco, depois a enxuguei, coloquei roupa limpa, dei-lhe um suco e fiz o curativo. Ela voltou a deitar-se confortavelmente. 

Durante a segunda-feira e todo dia de terça ela apresentou uma grande melhora, passou a tirar brincadeiras com minha irmã. Na terça à noite, antes dela dormir, recebeu a visita de um pastor muito empenhado na obra de Deus, que orou por ela. Eu mesma procurei esse tipo de assistência, seria importante o espiritual dela se avivar. Na quarta-feira o presbítero de minha igreja viria para ungi-la e na quinta os irmãos, que faziam um maravilhoso trabalho de visitas, viriam também. Estava assim acertado. O pastor deu-lhe palavras de muito incentivo, mas ela estava com o semblante caído, cansado, demorando um pouco para responder, o quê lhe era perguntado, embora até tivesse sorrido. Mas falava baixo.

À tarde disse que sua pele estava tão seca que repuxava e que lá em sua casa ela tinha costume de passar óleo de pequi em todo o corpo, porque diziam que era curativo. Isso era tão triste! Seria necessário hidratante especial, mas a conta da farmácia estava um pouco alta, embora minha prima Alcione tenha me prometido ajudar arrecadando junto à comunidade certa contribuição, o que o fez, não podíamos extrapolar, e mandei buscar em casa de um conhecido um pouco de óleo de pequi ele mandou uma boa quantidade. Eu a banhava usando luvas e agora as usava para ungir toda a pele dela antes dela dormir. Pensei em um poema que havia feito tempos atrás: "Só tu, Senhor, para curar com unguento as minhas feridas”.

(PROVAÇÃO

À margem do caminho

Deixei-me cair ferido.

Durou uma eternidade

A espera do bom samaritano.

Só ele para curar

Com unguento minhas feridas.

Recobrando um pouco as forças

Parei na estrada de Jericó

E clamei:

- Jesus, filho de Davi,

Tem misericórdia de mim!

No poço de Betesda aguardei.

Trinta e oito longos anos!

Nenhum anjo apareceu

Para mover as águas.

À sombra do zimbro

Assentei-me e chorei:

- Basta, Senhor!

Toma agora a minha vida).

 

Para fazer os curativos já não usava todas as gases compradas. Era necessário bastante. Não havia dinheiro suficiente para comprá-las, por isso rasguei uns quatro dedos de largura de um lençol meu, fininho. Lavei-o bem, engomei-o e cortei em quadrados. Assim, apenas uma gaze por baixo e o pedaço de tecido por cima.

Na quarta-feira pela manhã ela acordou sentindo fortes dores no estômago. Estava inquieta na cama. Logo minha mãe chegou da roça. Conversou comigo, e sentiu de perguntar se ela estava pronta para se encontrar com Deus, se essa fosse a vontade dele. Ela respondeu convicta que sim. Minha mãe precisou sair e só voltaria à tardinha. Mas me confidenciou, depois, que ficou apavorada ante a possibilidade dela morrer dentro de minha casa.

Ela piorava a olhos vistos. Fiz-lhe chás, dei-lhe com analgésico. Ela se acalmou um pouco e até dormiu.

Depois do almoço continuou a queixar-se da dor no estômago.  Ofereci-lhe um pouco de leite gelado, ela tomou e minutos depois ela vomitou, me deixando espantada: o vômito veio com raio sanguinolento. Procurei controlar meu espanto e nada falei.

Eu estava na cozinha. Seu choro cheio de dor me fez correr até ela, e ela me disse que a dor tinha aumentado muito, que estava insuportável e que aumentou mais “depois... depois...” Repetiu, enquanto se contorcia. “Fala Nina! depois de quê?!” Interroguei.  Ofegante me contou: “Um homem me apareceu... Horrível... Disse que ia me levar. Depois ele veio com uma mulher e ela estendeu a mão para o meu lado e a dor aumentou... Aumentou...”. Falou ofegante.

Abaixei-me próximo dela, segurei sua mão e falei convicta: “Isso é artimanha de Satanás, ouviu, Nina? Se alguém te levar, esse alguém é Deus. Satanás quer lhe perturbar. Concentre-se em Deus, fale com Deus. O Inimigo pode até tocar no seu estômago, assim como tocou em Jó, mas ele não tem poder de tocar na sua alma. Creia”!   Comecei a expulsar o demônio em nome de Jesus. Nessa hora arrepiei-me dos pés à cabeça. Coloquei minha sobrinha para ficar lendo o Salmo 91, enquanto eu andava pelo quarto expulsando todo mal do Inimigo. Nina estava sentada na cama, pedi que ela se deitasse, ela recusou com medo de fechar os olhos e voltar a ver o tal casal. Segurei sua mão com firmeza e disse que ela não iria ver nada, que ela não temesse. Enquanto segurava sua mão pedi que ela fechasse os olhos para saber se os via. Ela disse que não mais estava vendo-os, só aí se deitou e conseguiu dormir um pouco.

Mais tarde fui outra vez ao quarto olhá-la. Ela parecia meio “amortecida” em cima da cama, olhei-a bem e percebi que sua respiração estava muito ofegante, os olhos revirados aparecendo apenas o branco do olho. Um gelo se apossou de mim. Peguei em seu braço e o soltei. Ele caiu completamente. Chamei-a, ela não respondia. Segurei firme sua mão e quase gritei:

- Niiiinaaaa!!!! Aos prantos insisti, chamando-a mais ainda: “Nina! Niiinaaa”!

Minha sobrinha veio para o quarto, pedi que ligasse para a mãe dela. Corri para pegar a Bíblia e rapidamente passei a ler salmo 69, em voz alta. As lágrimas quase não me deixavam ver as letras:

“Salva-me, ó Deus, pois as águas me sobem até o pescoço. Atolei-me em profundo lamaçal, onde não se pode firmar o pé; entrei na profundeza das águas, onde a corrente me submerge.

Estou cansado de clamar; secou-se-me a garganta; os meus olhos desfalecem de esperar por meu Deus.

Aqueles que me odeiam sem causa são mais do que os cabelos da minha cabeça; poderosos são aqueles que procuram destruir-me, que me atacam com mentiras...

(...)

Ouve-me, Senhor, pois grande é a tua benignidade; volta-te para mim segundo a tua muitíssima compaixão. Não escondas o teu rosto do teu servo; ouve-me depressa, pois estou angustiado. Aproxima-te da minha alma, e redime-a; resgata-me por causa dos meus inimigos.

Tu conheces o meu opróbrio, a minha vergonha, e a minha ignomínia; diante de ti estão todos os meus adversários.

(...)

Minha voz era entrecortada pelo choro quase alto. Esse Salmo era mais um pedido de socorro meu a Deus. Quase no término do Salmo ela voltou ao normal. Gemendo e balbuciando alguma coisa.  Compreendi que ela queria ir para o pronto-socorro.

Dali a pouco já era quatro horas da tarde, o presbítero, junto com o irmão motorista, chegaram. Ele a ungiu e orou por ela. Aproveitamos a presença dos irmãos com o carro e pedi que a levássemos ao pronto-socorro.

O irmão motorista que deveria ir por um lugar mais simples acabou dando certa volta. A nossa frente ia um carro lento e o irmão não se esforçava para ultrapassá-lo. Nessas horas eu era bem covarde para exigir alguma coisa, pois me sentia na dependência. 

Chegamos ao pronto-socorro, após àquela dificuldade. Conseguimos levá-la para o atendimento. Ela teve prioridade e foi atendida, a despeito da falta de material e de leitos, segundo alegaram.  Até que o atendimento fora razoável. Havia duas médicas, apesar disso foi um pouco lento. Uma das médicas saiu ao nosso encontro examinou-a só com o olhar, enquanto a outra perguntou:

- Qual o problema dela?

- Lúpus eritematoso. Respondi-lhe. 

A outra quis saber o que ela estava tomando. De repente chegaram à conclusão que ela precisava ser internada na UTI. Foram telefonar para saber se tinha vaga, o que demorou certo tempo. Eu fiquei em espírito de oração, clamando a Deus. Dali a pouco apareceu uma moça com uma cadeira de rodas. Nem olhou direito para a situação da paciente. O que interessava era colocá-la na cadeira e levá-la rumo a UTI. Eu agradeci a Deus por haver uma vaga. Acompanhei-a até a porta. No trajeto, a perna de Nina pendeu para o chão e seu pé se arrastava na cerâmica. Pedia a moça que parasse para consertar o pé dela. A moça me olhou com uma cara de quem diz: “Não atrapalha!”. Chegando à porta da UTI, logo vieram recebê-la, feitas as perguntas de praxe ela adentrou a mesma. Eu fiquei escorada na parede defronte a porta do CTI. Minutos depois uma enfermeira saiu e me viu ali.

- Você ainda está aqui?

- É... Sei que a senhora... Ela não me deixou concluir e disse:

- Pode ficar lá fora, ela está em boas mãos. O médico de plantão é bastante competente.   Mas faça um favor: traga um cobertor porque aqui faz muito frio. Fiz o que ela me disse e liguei para minha irmã para que trouxesse o cobertor.  Lá fora, enquanto aguardava, sentei-me em um banco de cimento. Eu parecia anestesiada. Sabe aquela sensação de que tudo é silêncio a sua volta, a despeito do movimento reinante?  Eu estava vazia, não sabia o que pensar. Mas havia, contudo, certa satisfação: ela estava, enfim, na UTI, sinônimo de um atendimento mais intensivo. Se Deus quisesse tudo daria certo.

Enquanto isso eu ia passando todas as informações aos familiares, inclusive reforcei a respeito da 

Algumas horas depous minha irmã Neide, que era mais íntima dela, chegou com o cobertor. Quis logo saber como ela estava. Pegamos os lençóis rumamos para a UTI, passando primeiro pela emergência. Temíamos que o guarda-nos barrassem, não permitindo que as duas fossem até lá. Nada disso aconteceu. Agradecemos a Deus

Chegamos até a porta da UTI e batemos. Não houve resposta. Esperamos um pouco e batíamos de vez em quando. Tivemos que esperar até que uma enfermeira veio e quis saber o que queríamos.

- Entregar esses lençóis que nos foram pedidos. Falei.

- Ah, os lençóis...  Mas é para pessoa que acabou de morrer?

- O quê?!  Não...  E faleceu alguém?!  Minha irmã segurou a cabeça e disse:

- Meu Deus...  Não é possível! Olhei para trás e falei:

- Tenha calma, Neide. Controle-se! Mas eu também comecei a chorar na frente da enfermeira, que olhava para mim e para minha irmã.

- Ah, Deus...  Não pode ser...  Mas faleceu alguém? Insisti.

- Sim. Uma mulher que entrou muito mal em uma cadeira de rodas.  Minha irmã que estava escorada na parede, escorregou pela mesma e falou alto:

- É ela Auzinetti! É ela!  Eu não conseguia conter as lágrimas e tinha que controlar Neide, pois ela costumava desmaiar nessas horas.

- Neide, tenha calma. Levante-se e tenha controle!  Ralhei. Não vai desmaiar, entendeu?!  Respire fundo.

Voltei minha atenção para a enfermeira para ver se ela sabia o nome da falecida. Ela foi buscar o RG. Eu tinha esperança que não fosse ela. Dali a pouco ela apareceu com a identidade e o médico veio junto. Ele quis saber qual o nosso grau de parentesco, o que nos ligava ela. Informei-lhe que éramos apenas amigas. A enfermeira entregou o RG dela. Não havia mais dúvidas: Nina estava morta.

O médico nos deu umas explicações, mas infelizmente o óbito foi inevitável. Lamentou voltando para dentro da UTI.  A enfermeira disse:

- Ela era tão pobre, não era? Lembrei-me do cheiro do óleo de pequi, e dos pedaços de panos do lençol.  Na verdade éramos todos, quase lhe falei.

- Ah meu Deus, estivemos aqui domingo. Como seria se tivesse encontrado vaga na UTI?  Dizia eu enquanto as lágrimas desciam a rodo.  Minha irmã se contorcia em um canto de parede e eu pensava na lentidão de tudo desde o começo.  Falei para enfermeira, que pacientemente ficou ao nosso lado:

- As pessoas que nos atenderam foram frias, lentas, lerdas!  Falei com veemência.

Logo o corpo chegou ao necrotério. Descobrimos lhe o rosto. Tornamos a cobrir. Neide segurou-o por cima do lençol, falando:

- Minha querida...  Oh, minha querida... Foi tudo o que disse. Auzenate apareceu e a levou dali.  Eu fiquei um pouco mais e respondi ao preenchimento de alguns formulários. Voltei a contemplar aquele corpo. Descobri novamente seu rosto, e lhe falei:

- Desculpe-me, Nina. Perdoe-me. Eu sinto muito. Chorei convulsivamente.  Saí de lá e deparei-me com minha mãe. Quando a vi precipitei-me para os seus braços, tendo os meus encolhidos. Dobrei um pouco os joelhos e me encolhi em seu colo, falando:

- Mãe ela se foi. Ela se foi! Será que eu fiz a coisa certa? Será que eu fiz a coisa certa?! Repeti.

- Fez mulher,  fez! Você fez tudo o que foi possível.  Tudo o que estava ao seu alcance.

Com a papelada concluída, telefonei para o irmão dela, novamente, para que tomasse as devidas providências. Pedi desculpas a ele e disse que não tinha condições de ir para o enterro. Ele entendeu e repetiu várias palavras de agradecimento.

De volta em casa tomei um sonífero. Eu estava arrasada. No dia seguinte, pela manhã, minha mãe me acordou, eu teria que ir a tal lugar (não me lembro onde era).  Meu sistema nervoso estava abalado. Disse à minha mãe que estava com muito frio. Pedi a ela que me cobrisse com duas cobertas. Sabia que fazia sol lá fora.  Menos de uma hora levantei-me. Minha mãe falou alguma coisa, que não me recordo o que foi. Mas respondi grosseiramente: Eu lá estou preocupada com isso!  O que eu não consigo tirar da cabeça é que eu não fiz o suficiente. E passei a relatar: “O irmão que ia dirigindo carro, ia tão lento! O presbítero que pediu para ir a tal lugar, antes de socorrê-la... Eu nada falei. Eu não lhe dei nenhuma orientação. O atendimento lá na emergência foi tão lento e eu não disse nada, nada! Mas o que deu em mim?! como pude”?! 

Em minha mente veio a cara carrancuda da enfermeira que empurrava a cadeira de rodas. Voltei para minha rede. Silenciosamente chorei muito e comecei a falar com Deus: “Deus eu falhei na missão que tu me deste. Eu estava desligada, tão lerda quanto àquelas pessoas. Se eu tivesse sido mais esperta teria sido diferente. Poderia ter entrado na justiça para conseguir uma vaga na UTI. Fiz tão pouco... Estou me consumindo em agonias. Preciso que fale comigo. Quer seja para me acusar, quer seja para me consolar”.  Peguei a Bíblia e abri-a quase ao meio, o que li deixou-me maravilhada e me fez descansar.

“... ora o rei o ouvirá segundo estas palavras; vem agora, e consultemos juntamente. enviei a dizer-lhe: de tudo que dizes coisa nenhuma sucedeu; mas tu, do teu coração, o inventas” (Neemias 6.7,8).

Esse é o meu Deus! Magnífico! Que sempre faz Maravilhas. Essa resposta jogou um bálsamo dentro de mim. Compreendi que tudo o que eu pensava não passava de “desculpas” e que isso não impediria Deus levá-la. Levantei-me com o objetivo de tocar minha vida.

Vez em quando as cobranças queriam voltar à minha cabeça.  A lembrança dela... Cada cena ficou muito viva por muitos dias. O seu falar... Seu gemer... Voltar a dormir na mesma cama que ela estivera...

Minha sobrinha era apenas uma pré-adolescente quando presenciou tudo isso, me disse que estava sentindo o mesmo. Conversei bastante com ela para aliviá-la. Que aquilo tudo fora muito forte e pesado para ela, que ela me ajudou bastante. Por fim me falou que jamais gostaria de ser uma médica.

O pai e a mãe dela já não estão entre nós, anos depois faleceram e um irmão dela suicidou-se.

Agora em 2020, por conta da pandemia de COVID-19 (cononavírus), muito se fala no medicamento hidroxicloroquina, eficaz para a covid, segundo alguns, mas controverso, por parte de outros. No entanto, fundamental para o tratamento de lúpus. Mas Nina não tomava esse medicamento, nem tínhamos conhecimento dele, aliás ela não era mantida com nenhum medicamento específico para o lúpus. Nina morreu à mingua. Morreu por negligência, tanto da família como de médicos que a atenderam lá no princípio.

Algumas borboletas não completam seu processo de metamorfose, prematuramente eclodem do casulo para voarem em prados celestiais.

 

 

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